Uma luta da vida para a superação dos limites do possível, o espírito em busca de caminhos criativos de cura, assim se expressam esses diálogos. Sergio encontrou em seu sobrinho Paulo Cesar o ouvido amigo, organizador de ideias, cristalizador de memórias, aglutinador do amor, companheiro constante na procura de seu ser…
Sergio Britto telefonou-me em 2005. Procurava em mim alguém que o ajudasse com os conceitos da psicologia de Jung para a peça Jung e Eu, monólogo de Domingos de Oliveira com a colaboração de Giselle Kosovski, sobre Carl Gustav Jung, que encenaria meses depois.
Encontrei Sergio Britto por diversas vezes em sua casa em Santa Tereza para discutirmos os conceitos fundamentais de Jung, o processo de individuação, o inconsciente coletivo e os arquétipos. Nesses encontros pude descobrir um Sergio Britto com um discurso vibrante, cativante, puro transporte, a magnética presença de um ator e diretor teatral de personalidade inigualável. Falei sobre os conceitos junguianos, Sergio demonstrou a íntima convivência com esses conceitos, sua vida sendo plena expressão daquilo que Jung denominou “processo de individuação”, uma intimidade com os processos internos, uma convivência com as imagens interiores, um trilhar de caminhos tortuosos para a expressão plena do self.
Falou-me com intimidade sobre seus estudos de medicina, muito a gosto da família, mas distintos de seu querer mais autêntico. A poderosa vocação para o teatro já vinha emergindo como expressão de seu self criativo na faculdade, entre os disfarces médicos de sua persona. E contou-me finalmente como o ator e homem de teatro brotaram em sua plenitude, e Sergio pode então construir seu caminho próprio. Eu ouvia a tudo emocionado, constatando que o processo de individuação a que Jung aludira é ainda possível, embora bastante raro.
Sergio contou-me suas experiências fundamentais. Como conviveu com o preconceito sobre sua orientação sexual e pode integrar em sua vida todos esses aspectos.
Ouvindo-o, pude perceber a sabedoria da idade avançada convivendo com a inocência e espontaneidade da criança. Parece-me ser essa a maturidade maior. A integração da homossexualidade não se deu sem sofrimento, como me narrou. Falou no rito de passagem do seu processo de individuação em sua tentativa de suicídio, feita de modo automático, cortando os pulsos, após bastante tempo tomando sol na praia de Copacabana. Só depois entendeu os desafios e significados maiores de seu gesto para a integração de sua sombra.
Comentou outro ritual de passagem importante: sua desilusão com a medicina. Ainda estudante, plantonista em maternidade, os médicos estavam ausentes durante a noite (o que causava grande decepção em Sergio). Aconteceu um parto emergencial, com apresentação de cócoras. Sergio não sabia absolutamente o que fazer. Quando deu por si, estava fazendo o parto, que foi plenamente bem sucedido. A enfermeira parabenizou-o, relatando que ficou surpresa ao perceber que Sergio conhecia aquela manobra de… (usou um complicado nome em alemão do criador daquela manobra obstétrica). Sergio comentou para mim, com seu inigualável humor: “foi a minha primeira experiência mediúnica-junguiana do inconsciente coletivo…”. Ao ser perguntado sobre o que eu achava dessa sua experiência, comentei que realmente, em situações extremas, em momentos de transição de vida ou de morte, energias transpessoais podem ser ativadas no inconsciente coletivo, independentes de nossa volição pessoal. Sergio Britto teria sido um canal dessas forças curativas coletivas. Na verdade, ele o foi durante toda sua vida, imortal ator como foi, sempre um canal perfeito para personagens representantes de imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. Ele sempre nos levou às nossas catarses, às nossas transformações, às nossas curas através de suas performances.
O interesse de Sergio por Jung vinha já de algum tempo. Essa identificação com as ideias junguianas o levou, logo após o êxito da peça Jung e Eu, a fazer uma apresentação para a edição de 2006 do conhecido livro autobiográfico de Jung, Memórias Sonhos e Reflexões, pela Nova Fronteira. Nessa apresentação Sérgio conta um pouco de seu acercamento do complexo pensamento do psicólogo suíço: “Jung via a libido com maior amplitude, acreditando que valores como a espiritualidade, criatividade e nutrição poderiam mover os homens com tanta força quanto o sexo… Mais uma vez me aproximo de Jung. Por mais que eu tenha sido um ser humano altamente sexual e sensual, minha libido maior, aquela que dominou minha vida acima de tudo, foi sempre minha carreira artística, especialmente a do ator teatral. Encontro no realizar teatral, na procura interna de meu personagem de cada nova peça, um jogo espiritual altamente prazeroso, e no ato de criar um ser novo que não sendo mais eu, e sim alguém que criei dentro de mim, a libido que realiza um orgasmo acima de todos que experimentei em toda a minha vida sexual amorosa”. (Sergio Britto, 2006: 11,12)
Tive ainda dois encontros com Sergio para mim bastante significativos: no primeiro conversamos sobre os aspectos psicológicos da peça de Lars Nören, Outono, Inverno, que Sergio encenou no CCBB do Rio de Janeiro de junho a agosto de 2006, com a direção de Eduardo Tolentino. A conversa foi no programa semanal de Sergio na TV Educativa, Arte com Sergio Britto. O segundo encontro foi um convite meu para Sérgio dar seu depoimento pessoal sobre Jung no Congresso Junguiano promovido no Hotel Glória, em 2008. Nesse último encontro, Sergio Britto foi muito aplaudido por uma plateia de centenas de pessoas de todo o Brasil ao repetir trechos de grande intensidade dramática da peça Jung e Eu.
Agora Sergio Britto novamente surpreende a todos com sua força criativa. Em momento de extremo sofrimento, busca um caminho inesperado de resgate de sua memória, de suas imagens internas e de sua identidade. Nesses momentos difíceis, o gênio de Sergio Britto o ajuda nesse caminho semelhante ao do teatro, como se houvesse um texto teatral a ser relembrado, em diálogo constante com seu sobrinho Paulo Cesar. Paulo, a escuta amorosa; Sergio, a busca de ordem psíquica.
De início palavras soltas, neologismos, associações fragmentadas. Esforço comovente de organização. Sergio escreve ao papel e, a fac-símile, expressa de forma emocionante o esforço de ordenação a partir do caos. Palavras soltas, espaços e, por fim: “hoje é sábado”. Um início de ordenação temporal. Logo depois, os dias da semana, listados em sequência: sábado, domingo, segunda… Mais adiante, diversos nomes de frutas… É a melhora, a ordenação mental, a orientação têmporo-espacial que volta gradualmente. É a mente de Sergio Britto, habituada a muitos textos, muitas imagens, a memorizar diversas falas, mente acostumada às associações e ao imaginar.
Essa mente certamente é capaz de sair vitoriosa nessa batalha sobre o silêncio.
Elementos dos textos teatrais brotam por vezes. Sergio diz com energia e Paulo anota: “A tentativa de burilar as tentativas de se exprimir sobre o que pensa, o que deseja e sua capacidade de sua maneira muito jovem e muito em aberto sobre os pensamentos que virão do texto. Que, por mais que pareça um perigoso jogo de palavra, no fundo é uma busca constante de se encontrar um possível estilo de comunicação”. Sergio descreve assim, em forma vigorosa, sua comovente luta para voltar a se comunicar, manter-se íntegro em meio ao caos.
Os fragmentos continuam, por vezes expressando a busca de ordenação do espaço-tempo: “hoje é o Fla-Flum”; a memória associado ao afeto: “a lembrança de uma sala lembra contacques amorosos”. O papel aglutinador de Paulo Cesar como querido sobrinho, companheiro de há muito tempo no trabalho corporal aplicado ao teatro é fundamental. Os fragmentos brotam às vezes dispersos, às vezes buscando coalizão, e Paulo Cesar é diligente em anotá-los. Sergio reconhece o papel aplicado de Paulo nesse sinuoso caminho a dois: “O Paulinho tem na brilhante escolha uma perfeita visão dos eventos mais constantes e mais corajosamente pensados”.
No dia seguinte, o reconhecimento de um trabalho chamado muito acertadamente de Memória a dois: “meu sobrinho é uma pessoa em alta disponibilidade para se encontrar com o melhor de uma possível memória a dois”. “O que quero do Paulinho é o amor do Paulinho”.
A expressão surpreendente que Sergio emprega é digna de ênfase: “memória a dois…”. A memória de Paulo Cesar favorece a memória de Sergio, ambos relembram juntos, associam juntos… As ideias aos poucos fluem com mais nitidez e se adequam mais ao mundo externo. O efeito do contato com outras pessoas queridas é também importante no caminho.
Diz para Suely Franco ao telefone: “eu quero encontrar um caminho de escrever bonito como vocês merecem”. Os elementos afetivos, estéticos e conceituais seguem caminhos paralelos no psiquismo e atuam uns sobre os outros. A grande capacidade amorosa de Sergio Britto preserva sua personalidade e favorece sua recuperação. No dia 26 de abril, Paulo pede a Sergio, no trabalho de exercício associativo, que diga palavras que comecem com a letra “c”. Sergio diz várias palavras, “casal, caderno, corpo até chegar a “coração”. Logo após diz: “função agora é cada vez mais a minha memória”.
Coração, do latim cor, cordis, é o órgão da memória para os antigos. Sergio é aquele que sempre “soube de cor” seus textos. Agora novamente recorda cada vez melhor a partir do coração. Os antigos estavam certos, a sede da memória é o coração, o encéfalo somente articula nossas lembranças. Sergio está aqui associando amorosamente com o coração. No momento em que a estrutura cerebral está falha e a arquitetura neuronal inconstante em suas conexões, o coração participa como órgão auxiliar da memória de forma decisiva. Depois de legar para a cultura brasileira esses importantes diálogos, Sergio Britto nos deixou órfãos de sua rica presença. Este Memória a dois é sua derradeira obra criativa, uma mensagem de otimismo, força criativa e crença no poder espiritual da vontade. A reflexão que Sergio Britto faz para si mesmo ao terminar serve também para todos nós que o acompanhamos em sua trajetória de estrela fulgurante: “agora é hora de esperar com calma e tentando não sofrer as próximas palavras”. – Walter Boechat
Esse livro é um milagre, afinal Sergio estava chegando em casa de uma longa internação, debilitado, convalescendo, quando me fez o pedido: “Paulinho, agora você vai organizar o meu pensamento”. E eu ter ouvido o que estava por trás desse pedido.
Foi assim que esse texto começou a ser escrito.
Isso é o que chamo de milagre, está tudo ali para acontecer, mas foi preciso que Sergio e eu estivéssemos disponíveis.
Muito importante também o momento em que procurei Walter Boechat, seguindo também o desejo do Sergio. Walter, que já havia trabalhado com Sergio nos fundamentos da psicologia junguiana para a criação de seu espetáculo JUNG E EU, foi comigo de grande delicadeza, atenção, e logo percebeu a importância desse registro, aceitando escrever o prefácio. Isso foi fundamental para mim naquele momento.
Outro ponto importante foi a FUNARTE aceitar editar o livro. Sergio e eu sempre desejamos isso. Agradecemos a todos da Funarte, destacando Antonio Gilberto, Guti Fraga, Oswaldo Carvalho e Filomena Chiaradia.
Esse livro também faz parte de todo um projeto da nossa família, coordenado por minha irmã, pela preservação da memória do Sergio: Ocupação Sergio Britto em São Paulo, Projeto Sergio Britto Memórias.
Ainda no início, ainda nas primeiras anotações, eu lembrava da minha amiga Nise da Silveira, que sempre me dizia qual deveria ser a postura do terapeuta frente ao doente, frente à aquele que sofre. Que não se perguntasse muito, deixasse que a pessoa falasse o que queria e precisava dizer. O essencial. Porque eu tinha muitas curiosidades frente à vida do Sergio, às suas memórias, mas deixava que ele dissesse o que queria dizer, o que queria me contar. Eu sempre soube da importância desse texto e ele aos poucos, vai se dando conta, quando me pedia que eu lesse para ele o que nós tínhamos anotado. Sergio me ouvindo, vai se reconhecendo, vai fazendo contato com o significado do texto. Tudo devagarinho, respeitando o tempo que ele precisava, os silêncios, as reflexões para suportar a dramaticidade daquele momento. Esse texto foi também um exercício para manter a sua esperança de voltar ao palco, seu maior desejo. Durante a criação desse texto, Sergio ainda fazia comigo leituras da peça de Tchecov, O Canto do Cisne, que pensava encenar sob a direção da Isabel Cavalcanti. Ele tinha paixão por essa peça, e esse desejo ainda esteve presente até quando percebe sua incapacidade em memorizar.
Diariamente fazíamos exercícios teatrais, exercícios físicos, dizíamos poemas, cantávamos, Sergio eu e Marilia, dançávamos muito. Sergio adorava tudo isso, precisava se expressar e era necessário manter o seu tempo ocupado. Já no fim de sua vida, na sua última internação em dezembro de 2011, Sergio pede que o tire da cama do hospital: ”Paulinho, para eu ser feliz eu preciso trabalhar na boate, o único lugar do mundo que eu posso ser feliz é a boate ali, ao lado do teatro da Jacqueline Lawrence”.
Era o ator que precisava atuar, e quando me ditou esse texto, era um ator em estado de graça! – Paulo Brito