Vida
“Sou carioca, me chamo Sergio Pedro (porque nasci no dia de São Pedro, 29 de junho, canceriano-e canceriano pra valer) Corrêa de Britto. Sou o único da família com dois t, culpa do funcionário que fez minha certidão de nascimento. Está lá: filho de Alzira de Freitas Brito e Lauro Corrêa de Brito. Os dois, mãe e pai, com um t, só eu com dois.
Família pequena, papai e mamãe, meu irmão Helio – que casou com Nena, fez dois filhos, a Marilia e o Paulo Cesar. Essa família ficou muito forte, porque a Nena tinha instinto de mãezona e aí, em vez de uma mãe só, a Alzira, ficamos com duas: a Alzira e a Nena. Depois D.Marina, mãe de Nena, veio morar conosco. E aí a Marilia casou e teve duas lindas filhinhas, a Renata e a Claudinha. Família muito agarradinha, muito. Mamãe era uma supermãe. Foi quando, aos 27 anos, já pronto para cair no mundo profissional ( Rugero Jacob tinha me convidado para ir para São Paulo), mamãe olhou para mim e disse, com a maior calma desse mundo: “ Você não pode viver sozinho, você não sabe fazer nada”. Ora, mamãe, eu vou me virar, dou um jeito, aprendo”. Eu dei um jeito, vários jeitos, mas nunca aprendi nada, não faço café, não sei estalar um ovo, mas sempre dou um jeitinho. Isso sim eu aprendi.
A família me fez perder oito anos da vida para estudar Medicina, dois anos no Colégio Universitário da Praia Vermelha, fazendo complementação, e depois seis na faculdade. Da Medicina, me ficou a experiência de ter conhecido uma realidade do meu povo que eu não sabia e, sem ela, talvez não conhecesse nunca. Eu não era para ser médico não: trabalhei em pronto socorro, em maternidade, em Santa Casa, mas, meu Deus, eu não gostava de estudar Química, Física e Biologia. Mais tarde, clínica médica. Não, eu não tinha o interesse científico que faz o verdadeiro médico.
A confusão na cabeça chegou a ser um bocado difícil. Não queria Medicina, mas não sabia o que fazer no teatro. Não me achava ator, os meus mestres iniciais não tinham sensibilidade e cabeça para me pôr dentro da profissão. Eu tinha atração pelo teatro, isso sim, mas estava perdido. Quando comecei, a gente aprendia a repetir o que o seu mestre mandou – e era horrível. Eu ficava inseguro e não achava graça naquele jogo pré-fixado.
Um dia, eu há era profissional havia três anos, o José Renato resolveu fazer Uma mulher e três palhaços e me encarregou de ser o Crockson, um palhaço inglês, falando com sotaque, bem louco, apaixonado pela Eva Wilma, que estava apaixonada pelo John Herbert. Uma mulher e três palhaços, a maquiagem de palhaço, o nariz de bola de pingue-pongue, as correrias, os tombos, as subidas e descidas em escada, representando em teatro de arena, no olho do público, foi a descoberta. Eu me resolvi, me senti ator. Eugênio Kusnet me falou de memória afetiva, de como criar os meus pontos de concentração. Aí, ninguém me segurou mais, virei ator mesmo – bom, razoável, ótimo, medíocre, com todas as variações prováveis em cada personagem, em cada momento diferente desses 53 anos – e o ator me segura e eu acredito nele.
Só gosto de viver no Rio – minha cidade amada, apesar das traições com Nova Iorque, Londres, Paris, a Itália toda, mas, antes de tudo, Veneza, a mais linda do mundo – apesar da necessidade de conhecer gente diferente, como foi a Índia, o Irã, a Tailândia, a Grécia. Ver nos olhos dessa gente aquilo que Brecht dizia: “Descobrir o conhecido no desconhecido, e o desconhecido no conhecido”. É um barato. É a descoberta maior da vida.
No rosto enrugado de um mendigo cego, em Teerã, vejo alguma coisa especialmente perceptível – a grandeza da alma, o orgulho imbatível e a amizade que está ali, à flor da pele. É o lado conhecido possível. E, no amigo que você conhece de todo o dia, um dia descobre algo inesperado, algo nunca pressentido, bom ou mau, mas algo novo, desconhecido até então. A partir dessa premissa de Brecht, a vida me tem parecido boa, sempre aventura, fantástica, experiência sem fim, apesar de, apesar de, apesar de
E vou nos meus 75 anos, feliz da vida, “apesar de você” – Sergio Britto