Ídolos do Cinema
“Lembro de um domingo chuvoso quando a água chegou a subir na calçada lá de casa. No cinema Helios estavam passando O homem invisível, de H. G. Wells, com o Claude Rains no papel. Era o último dia. Mamãe tinha resolvido que ninguém ia ao cinema. Eu comecei a chorar às dez horas da manhã e esperneei tanto que acabaram me levando ao cinema. O carro teve que subir na calçada e eu fui carregado para não cair dentro d’água. Fui direto da janela para dentro do automóvel, passado de mão em mão. E fui sozinho, claro. O filme merecia. O cinema é, para mim, até hoje, o maior interesse, a grande paixão” – Sergio Britto – Trecho do livro “Fábrica de ilusão – 50 anos de teatro”.
“De certa forma ainda acho que gosto mais de cinema que de teatro como espectador. O cinema me envolve mais, me faz fugir mais da realidade, não sei… Eu gosto de teatro, muito, mas sou muito exigente. Mas eu sou muito exigente comigo mesmo também. Demais. A ponto do exagero.” – Sergio Britto
“Eu morava em Vila Isabel. Estávamos em plena segunda guerra mundial. Em 39, eu tinha 16 anos, já era apaixonado por cinema, mas cinema europeu e, especialmente, cinema francês, conhecia pouco.
Aí, o Luciano, um amigo meu de bairro começou a me falar do Cinema Pathè, ainda na Cinelândia, alugado a uma dessas igrejas do Bispo Macedo, e não mais o delicioso pequeno cinema em que vi tanta coisa bonita. Nós, eu e o Luciano, descobrimos Jean Renoir, Julien Duvivier, Marc Allegret, René Clair, Marcel Carné e Leonide Mogny. Jean Renoir é talvez junto com René Clair (e nos tempos mais próximos François Truffaut) os grandes diretores do cinema francês.
De Renoir, A Grande Ilusão passada quase toda num acampamento alemão com prisioneiros franceses: a insólita dramaturgia e a excepcional direção de atores como Jean Gabin e Pierre Fresney, franceses, e o extraordinário Eric von Strohein como chefe comandante alemão, davam ao filme uma qualidade que só vendo. O maior de Renoir é outro, La Regle du Jeu (A Regra do Jogo): num belo castelo no interior da França, amigos, quase todos ricos, alguns podres de rico, um aviador famoso, e até os empregados, vivem uma noite de loucuras em que no meio da comédia mais cínica, de repente, surge uma situação dramática real, que só não é um golpe de surpresa, pois ela vem se preparando por toda a aparente frivolidade sentimentalóide do filme. Extraordinário, dos maiores filmes da história do cinema, sempre na lista dos 10 melhores de qualquer crítico. De Renoir ainda muito bons, A Besta Humana, com Jean Gabin, Simone Simon e Fernand Ledoux, baseado num romance de Emile Zola e Bas Fond com Jouvet e Jean Gabin, baseado na peça de Gorki, Ralé, dessa vez um pouco menos russo, mas não menos interessante dramaticamente.
Marcel Carné nos empolgou com uma coleção de filmes sempre muito interessantes. Ele era o diretor capaz de contar histórias bem diferentes, mas sempre criava o clima, o ambiente verdadeiro desses roteiros e os transformando em filmes exóticos, atraentes, de uma sensualidade muito forte. Como esquecer Le Jour Seleve, em português O Dia Amanhece ou coisa assim, não me lembro como se chamava em português. Jean Gabin matava um canalha (Marcel Herrand) e ficava cercado pela polícia no apartamento. Enquanto o cerco acontece, em flashback, a gente conhece toda a história até o crime. Em Hotel do Norte com um elenco incrível, com Arletty, Louis Jouvet, a história se passa num hotel no norte de Paris, onde chega um casal que pretende se suicidar: Annabella e Jean Pierre Aumont. Ele dá o tiro nela, fere a moça, mas depois perde a coragem, não se mata e foge. Graças a Deus, a moça não morre e eles se reencontram. Roteiro de grande riqueza psicológica, personagens incríveis, me lembro, inclusive, que foi a primeira vez que vi no filme um personagem sair do hotel, um homem que todos esperam vai encontrar a namorada, mas encontrou um soldado, seu namorado. Agora é hora das obras primas de Carné:
1) Les Enfants du Paradis, que na França quer dizer a platéia jovem das galerias, os lugares mais baratos do teatro. Les Enfants é a história de um grande mímico, vivido extraordinariamente por Jean Louis Bariault.
2) Les Visiteurs du Soir (Os Visitantes da Noite), uma história fantástica, com Marie Casarés, Alan Cuny e outra vez Marcel Herrand criando um tipo mau, dessa vez o próprio diabo.
3) Quai des Brumes (Cais das Sombras), com Gabin, Michelle Morgan, Michel Simon e Pierre Brasseur, um típico filme noir, é isso mesmo, cinema pessimista, de ambientes pesados, pouca luz com efeitos extraordinários dramaticamente.
E tinha também Julien Duvivier, o menos importante de todos eles, mas capaz de criar Pepe Le Moko, passado no Casbah da Algeria, um filme noir, mas muito romântico, com Gabin e Mirelle Ballin. Carnet de Baile: uma mulher fica viúva, rica, sozinha, pega o seu velho carnet do seu tempo de solteira e vai rever um a um todos seus antigos namorados, todos que tinham dito que a amavam e que com ela tinham dançado naquele antigo baile. Quando estreou foi uma sensação. Revi agora em vídeo, é uma decepção, uma novelazinha de quinta, apesar da excelência do elenco com Marie Bell, Pierre Richard Wilm, Louis Jouvet, Michel Simon, Fernandel. Fez ainda nesse período uma deliciosa comédia, La Belle Equipe (Camaradas), onde Viviane Romance era a mulher mais bonita do mundo, pelo menos, para o entusiasmo da nossa juventude, a minha e a do Luciano. Tem mais, fica pra outra vez.” – Sergio Britto – Coluna sobre cinema para o “Acontece na cidade” – Março 2004.